Thiago Barbosa
O mundo que prima pelas inovações tecnológicas muitas vezes não cede espaço para o saudosismo de quem superestima coisas antigas. Fazendo parte deste mundo, em plena era do CD, DVD e MP3, me causou estranheza receber de presente do meu tio uma vitrola. Não que eu quisesse assumir o papel de vanguardista incondicional, mas estava acostumado a caminhar paralelamente ao que de mais inovador acontecia no mercado tecnológico.

Além de um tanto antiga, a vitrola apresentava certas características que denunciavam os vários anos de uso. Arranhões ela tinha desde o tampão do toca-discos até o revestimento de madeira nas laterais, peculiar nos aparelhos elétricos de antigamente.

Posso dizer que o primeiro contato com a vitrola não foi dos mais familiares, tendo em vista minha inabilidade em manusear um aparelho que não possui controle remoto. Olhei-a de cima abaixo e, na tentativa de encontrar nela alguma serventia, comecei a pressionar botão por botão para tentar abrir a tampa do toca-discos. Em lugar de algumas teclas havia pregadores de roupa.

O leitor já deve ter presumido que eu não achei a dita tecla, pois ela inexiste nessas peças raras. Não são nossos modernos microsystens, que ao simples toque de um pequenino botão de nome 'Open', a bandeja de CDs se abre automaticamente para que coloquemos os discos compactos. No caso de minha relíquia, o 'Open' era a minha força braçal. Ao abrir o tampão, tamanha era a poeira que logo me veio o primeiro espirro. Coloquei o vinil na vitrola e a liguei. Um estrondo vindo das caixas de som me fez pensar que havia estourado os tímpanos.

Ajustei diversas vezes a agulha no vinil, esperançoso de que aquela geringonça produzisse algo consoante aos meus ouvidos, porém só o que ouvia era um chiado infernal. É bem verdade que o presente de grego que me fora concedido não duraria lá muito tempo. Na iminência de arremessálo pela janela, resolvi procurar a assistência técnica a fim de descobrir se havia salvação para ele. Após um breve exame, o técnico não teve dificuldades em detectar o problema: a agulha, enferrujada e coberta por uma fita isolante para lhe assegurar a sustentabilidade, não funcionava mais com a mesma eficácia.

Apesar de a agulha não ter sido o único problema e a substituição provavelmente ter me custado mais do que a própria vitrola, já se tornava uma questão de honra fazê-la ao menos produzir alguns instantes de consonância.

Todo o empecilho de ouvir música na vitrola despertou em mim certa ansiedade em vê-la funcionar. Novamente pequei o viniu e o coloquei no toca-discos. Ajeitei a agulha e apertei o pregador para começar a ouvir música.

Finalmente jurássico aparelho apresentava indícios de utilidade, que pouco tempo depois se esvaneceram com o surgimento de outros defeitos, tornando-se impossível o conserto.

Continuo a consumir vorazmente as novidades do mercado tecnológico, mas ainda hoje me lembro do saudoso chiadinho da estimável vitrola minha vitrola.
Thiago Barbosa


Farol da esperança é uma das poucas esquinas da minúscula cidade de Patiobinha do Norte, situada a oitocentos e trinta quilômetros da capital do Estado de São Judas de Perde-botas. Cidade que, apesar do diminuto tamanho, dispõe de pomposos recursos em seus cofres. Entretanto, a divisão de renda do município está distante da eqüidade tão sonhada pelos justiceiros sociais. Boa parte dos desventurados que reside em Patiobinha ganha a vida nesta esquina, parados na calçada e aguardando o fechamento do sinal para mais uma das muitas tentativas não compensadas de conseguir um trocado para comer. Malabares, peripécias, limpa-vidros profissionais, vendedores de balas, diversas são as formas de abordagem para angariar um vintém e poucos os resultados obtidos. Nesta esquina tenta a sorte também o garoto Purrão, morador de rua e órfão de pai e mãe. Já era quase meio dia e o dinheiro conseguido por Purrão mal dava para um cafezinho. As desculpas eram sempre as mesmas: "hoje eu não tenho", "outro dia eu dou". Isso quando não lhe mandavam a mãe trabalhar ou simplesmente suspendiam os vidros do carro em sua cara, como se ele viesse a apresentar alguma ameaça.

O garoto, já desesperançado de conseguir no sinal algo que pudesse formar um almoço, começa a caminhar pelas ruas de Patiobinha do Norte, de bar em bar, a ver se arranjava ao menos alguma sobra de comida para preencher o bucho. Ao cruzar a Rua Nova e adentrar a Praça Principal, deparou-se Purrão com uma soma de pessoas bem trajadas diante de um imponente palanque, onde se realizava a solenidade de posse do segundo mandato do prefeito Barbatana. Autoridades políticas, religiosas, imprensa e os principais representantes do empresariado local se faziam presentes. Purrão era pequeno demais para entender o que estava acontecendo, mas seus anos de vivência nas ruas a pedir esmola eram suficientes para acreditar que ele encontraria ali maior facilidade em conseguir as moedas que faltavam para inteirar seu almoço. Achegou-se à multidão, arrancou do bolso a sacolinha de moedas e começou a dura missão.

O Padre Antônio fazia o último dos trocentos e tantos discursos enfadonhos de congratulações ao prefeito Barbatana e, entre a leitura de um e outro versículo bíblico, fazia mensão às benfeitorias do Governo Municipal no primeiro mandato, sobretudo as de ordem social.

- Graças à dedicação e a competência de nosso eminente prefeito Barbatana é que a população patiobiense pode se considerar em franco desenvolvimento, os índices de pobreza diminuíram assombrosamente. É notória a melhoria das condições de vida da população carente e a diminuição das disparidades sociais. Viva o Barbatana!

As palavras da autoridade religiosa eram regadas a efusivos aplausos e ensurdecedores assobios. Os fogos encobriam o céu, a formar extensas nuvens de fumaça. As pessoas se abraçavam e gritavam urras ao prefeito, o mesmo respondia com um V de vitória, apontando para a multidão o fura-bolo e o obseno. Purrão continuava na sua empreitada em coletar moedas, mas todo aquele alvoroço tornava surdas as pessoas diante dos pedidos do garoto e despercebida a sua presença diante do mar de gente que delirava a exaltar o prefeito que promovera a igualdade social em Patiobinha do Norte.

No dia seguinte, os principais jornais da cidade expunham em suas manchetes os números do primeiro mandato de Barbatana. No CORREIO PATIOBIENSE a manchete vinha com a foto da solenidade e com o seguinte título: "Prefeito da mudança é aclamado pela população". "Desigualdades sociais diminuem em 91% em Patiobinha" estampou o A CARTA DE PATIOBINHA, e "Diminui a exclusão social nos últimos quatro anos" era o destaque do DIÁRIO DE PATIOBINHA.

Na noite fria de Patiobinha do Norte, depois de os jornais serem consumidos pelos moradores, que se embasbacavam com os expressivos números de desenvolvimento social do município, a manchete da diminuição das desigualdades sociais em 91% em Patiobinha acobertava o corpo de Purrão e o protegia da baixa temperatura.